Publicado originalmente na Gazeta do Povo em 06/03/25.
O Projeto de Lei nº 4691/2024, apresentado em 2024 pelos deputados Silas Câmara (Republicanos-AM) e Dani Cunha (União-RJ), propõe a criação da Lei de Proteção às Liberdades Constitucionais e ao Livre Exercício da Atividade Econômica na Internet e foi enquadrado por notícias como o PL das Fake News da centro-direita. Não é bem assim.
O projeto foi resultado do seminário “Os novos desafios regulatórios do ecossistema digital”, realizado em 19 de junho de 2024 após requerimento da deputada Dani Cunha na Comissão de Comunicação da Câmara, então sob a presidência do deputado Silas Câmara. O evento reuniu os presidentes da Agência Nacional de Telefonia (Anatel) e do sindicato nacional das empresas de telefonia, a Conexis, além de representantes da radiodifusão, como os presidentes da ABERT e ABRATEL, sindicatos das emissoras de rádio e tv. Também participaram os diretores de relações institucionais das emissoras Globo, Record e SBT e o presidente da Igreja Sara Nossa Terra, proprietária da Rede Gênesis de Televisão. Não houve participação de entidades ligadas à liberdade de expressão de nenhum dos lados do espectro. Muito menos das plataformas digitais.
Embora o projeto tenha origem nos interesses do setor de radiodifusão e no braço evangélico vinculado ao setor de telecomunicação, a imprensa tem retratado o PL 4691/2024 como uma alternativa assimilável à oposição, ao contrário do PL das Fake News. Diante disso, o Governo Federal abraçou o projeto, incorporando-o às suas prioridades legislativas para 2025, enxergando nele uma oportunidade para avançar na regulamentação das plataformas digitais.
Mas quais as semelhanças e diferenças do PL 4691/24 para o PL 2630/20, o tão polêmico PL das Fake News? Em primeiro lugar, os projetos se assemelham por buscar ser a bala de prata para todos os problemas que envolvem as redes sociais. Ao ler o PL 4691/2024 salta aos olhos a sua abrangência excessiva, tanto no leque de temas tratados quanto na sua esfera de aplicação. A proposta reúne, em uma única lei, temas tão distintos quanto regras de moderação de conteúdo, controle da ordem econômica, tributação da receita bruta das plataformas digitais – para financiar fundo de interesse das teles – e normas para publicidade online, algo particularmente interessante para suas concorrentes televisivas. O PL se aplica não só às redes sociais, mas a apps de mensagem, ferramentas de busca e outros tantos tipos de plataforma.
Em convergência com as pautas do governo, outra grande semelhança entre o PL 4691/24 e o PL das Fake News está no “Tratamento Preventivo e Corretivo de Crimes na Internet” – previsto em seu artigo 10º – essencialmente o “Dever de Cuidado” do PL das Fake News reembalado. Na prática, a proposta terceiriza às plataformas a responsabilidade de fiscalizar crimes on-line e cria um dever de preveni-los ativamente . Em resumo, caberia às plataformas serem os árbitros do discurso legítimo.
Debates sobre a entrada de profissionais cubanos no programa “Mais Médicos” poderiam, por exemplo, suscitar argumentos sobre preconceito em razão de nacionalidade, que caberia às plataformas arbitrar. Críticas contundentes às autoridades, manifestações populares, greves ou passeatas poderiam ser interpretadas como “ameaça” ao Estado Democrático de Direito, e novamente caberia a Google, Meta ou Tiktok bater o martelo. Alguém tem alguma dúvida que elas agiriam de forma a preservarem seus bolsos?
Outro ponto comum, também de interesse do governo, é a regulação dos chamados “riscos sistêmicos”. Ambos os PLs impõem às plataformas o dever de monitorar e mitigar riscos relacionados à disseminação de conteúdos sistematicamente danosos. O problema é que a definição de “risco sistêmico” é ampla e subjetiva, permitindo discricionariedade excessiva a reguladores e plataformas. O caso do vídeo do deputado Nikolas Ferreira ilustra como essa lógica poderia restringir discursos políticos. O conteúdo ultrapassou 300 milhões de visualizações e, por sua viralização em si, pode ser interpretada como um “risco sistêmico”, pois influencia a opinião pública e a economia. Sem critérios objetivos, basta que o vídeo seja considerado “controverso” para ser suscitado o risco sistêmico e exigir ações preventivas das plataformas.
Mas nem tudo no projeto segue o modelo do PL das Fake News. O projeto também tem seus excessos próprios. Em um deles, extrapola a vedação constitucional ao anonimato, exigindo identificação real e preliminar dos usuários, sob pena de responsabilização solidária das plataformas. A vedação ao anonimato, prevista no art. 5º, IV, da Constituição Federal, objetiva possibilitar a responsabilização de quem se vale da liberdade de expressão para cometer ilícitos. No entanto, ela deve ser interpretada e aplicada de forma equilibrada, de modo a não restringir desnecessariamente a liberdade de manifestação de pensamento. Diante desse cenário, a exigência de identificação “real” e preliminar pode causar um efeito inibidor em manifestações absolutamente legítimas de ativistas, jornalistas e até mesmo cidadãos comuns. O Marco Civil da Internet já tem uma saída efetiva: a guarda de registro de dados e sua entrega sob certos critérios em caso de requerimento judicial.
Além disso, a proposta de Dani Cunha e Silas Câmara submete toda publicidade online a um regime de responsabilidade solidária – algo que não existe nem mesmo em revistas ou jornais. Aliás, conseguem imaginar uma emissora de TV responsável solidariamente pelos produtos que divulgam em seus espaços publicitários? Mas esse tema é complexo e merece um artigo específico.
A cereja do bolo, para encerrar, fica para o papel da Anatel. O projeto reserva para a entidade o papel de regulador econômico da internet. Por que a Anatel, agência especializada em antenas e sinais, oras? O curioso é que o texto inova: a “interferência na liberdade de manifestação de pensamento na internet” passa a ser uma infração de ordem econômica. Não bastou invadir a competência do CADE, também se arvorou em questões de liberdade de expressão.
Se restou alguma dúvida sobre os interesses por trás do PL 4691/24, sugiro que busque ler as disposições transitórias do texto. O dispositivo prevê 5% (cinco por cento) da receita operacional bruta das operadoras de plataformas digitais para o FUST, o fundo de universalização dos serviços de telecomunicações. A questão é: alguém ainda vai continuar chamando este de projeto de PL das Fake news da direita?
Jamil Assis é Diretor de Relações Institucionais do Instituto Sivis.